Quem visse Catarina naquela manhã, estática diante da loja de calçados, diria que a menina havia congelado no meio da noite. Somente podíamos perceber o brilho de seus olhos fixos na vitrine. Do restante, não movia um músculo sequer. De longe, parecia nem respirar.Dois passos adiante, sua vida miserável voltava à dura e crua realidade de quem sempre viveu com muito pouco, sabendo esperar e muito para algum desejo realizar-se. Pensava nos preparativos para o casamento da irmã mais velha.
Toda a atenção da casa estava voltada para Camila agora. Fechava os olhos e lembrava-se das mulheres da família, todas reunidas na costura, discutindo o recheio do bolo, a lista de convidados e uma forma de baratear o almoço que seria servido após a cerimônia.Tia Angélica sugeriu:
-Vamos servir galinha à cabidela! Eu conseguiria um bom desconto lá na avícola.
Camila que experimentava o corpete do vestido gritou:
-Tia...galinha, não! Que coisa mais vulgar, além do quê isso é coisa de festa junina. Depois a cidade toda vai dizer que não passamos de uns caipiras mesmo. Pobre sim, caipira não.
- Filhinha, mas não vamos convidar toda a cidade, somente os vizinhos, retrucou a mãe.
- Mãe, mas você não sabe como a cidade fala, não é? Eu estava pensando em algo mais chique, tipo estrogonofe de filé mignon.
-Filé mignon, Camila? Perdeste o senso? Quando é que seu pai vai conseguir comprar quilos e quilos de filé mignon? Você tem noção de quanto custa também o champignon e creme de leite? Temos todas as outras despesas do casamento. Estamos endividados até o Natal.
Endividados até o Natal, endividados até o Natal, endividados até o Natal. As palavras ecoavam na cabeça de Catarina, ali estática diante da sandália mais bonita que já vira na vida. Aos quatorze anos já se achava merecedora de um calçado assim. Mas ao baixar seus olhos para os pés, deu de cara com um par encardido de havaianas.
Novamente voltava aos preparativos do casamento. Se Camila resolveu casar-se o problema era dela. O noivo é que pague a festa.Metade dos convidados são dele mesmo.Por que é que papai e mamãe teriam de gastar todas as economias com ela? E eu? Quem vai me comprar uma sandália? E não é qualquer sandália, é a sandália mais linda do mundo.
Quem vai me perguntar se estou cansada de andar de havaianas desde que me conheço por gente? Quem vai perceber a vergonha que sinto de andar calçada por aí assim?
Já a Camila, andava sempre bem vestida, não era nada chique, mas Catarina fazia força para lembra-se de ter visto a irmã calçando um par de havaianas. Afinal mamãe sempre dizia que ela estava em idade de casar e que não deveria andar desleixada pela rua. E por ocasião do noivado com Frederico, Catarina lembrou-se que, por conta das despesas do jantar, sua mãe deixou de comprar um livro que a professora pediu que lessem nas férias.E nem adiantou reclamar:
-Mas mãe, é importante. A professora vai pedir um resumo no início do semestre.
-Ah, Catarina, se vire. Peça emprestado para uma coleguinha que dará tudo certo. Agora não tenho condições de gastar nem mais um centavo.
Neste instante passou pela rua um veículo em alta velocidade, que ao desviar de um buraco, acertou em cheio uma gigantesca poça de água que acabou por encharcar todo o vestido de Catarina. Mas a menina permaneceu imóvel. Era o própria criança diante de uma vitrine de doces. Neste caso o doce era dourado, reluzente, com tiras fininhas recobertas de strass. Conforme o sol da manhã entrava pela vitrine, os detalhes da sandália faíscavam em raios multicoloridos.
Em meio à este estado quase hipnótico lembrou-se ainda do primeiro dia que entrara nessa loja.Era um sábado daqueles em que as ruas estão agitadas, um verdadeiro burburinho.Mamãe abriu a pesada porta de vidro e ela e Camila a seguiram em silêncio.Tamanho luxo as deixou totalmente emudecidas.Lá não havia cadeiras e sim poltronas recobertas de veludo vermelho. Catarina passou os dedos pelo tecido para atestar se ele era realmente tão macio quanto parecia ser. E era sim. No centro da loja pendia um lustre de cristal como aqueles das estórias infantis. A atendente era linda e loira e ao se aproximar perguntou à mamãe:
- Pois não, senhora, em que posso ajudá-la?
- Estamos aqui para comprar o sapato de casamento da minha filha. Ela se casa em um mês com um moço muito bom. O Sr.Frederico, filho do Sr. Assis da venda lá da Rua Treze. Rapaz bonito e muito educado.
- Mamãe, por favor, disse Camila. Viemos aqui escolher o sapato.
Enquanto isto Catarina estava imóvel diante da tal sandália dourada. A atendente trouxe pelo menos uns 10 pares para Camila experimentar. Todos brancos. A mãe olhava os preços nas caixas e arregalava os olhos . Foi quando a mãe perguntou à atendente se eles possuíam crediário é que o sonho de Catarina, de ter a sandália dourada, foi por água abaixo.Mas mesmo assim ela tomou coragem e tentou:
- Mãe, posso comprar essa sandália para o casamento?
- Você ficou louca menina? Sua irmã está cheia de sandálias lá em casa. Com certeza alguma servirá para você.
- Mas mãe, ela calça 37 e eu 35.
- Ah, Catarina, larga de bobagem, menina! E faça silêncio que sua irmã precisa decidir-se. E além disso não tenho dinheiro e esta loja não aceita crediário. E pare logo com isso. Deixe de frescura. Parece até que está com inveja da sua irmã.
Inveja? Inveja? Como explicar para sua mãe que ela também tinha desejos. Afinal ela já tinha 14 anos e parecia que ninguém percebia.
Alguns pingos de chuva começaram a cair do céu. Ao longe uns trovões anunciavam a tempestade. Foi nesse exato momento que Catarina voltou à realidade e prometeu a si mesma que teria aquela sandália custasse o que fosse preciso.
Um mês passou rápido e logo veio o casamento de Camila. Catarina passou ao largo de todos os acontecimentos, sempre com a sandália dourada em mente. E assim o tempo foi passando até que numa tarde ensolarada a atendente linda e loira viu estacionar em frente à loja um carrão daqueles importados, último tipo.
Dava prá ver que lá dentro encontrava-se o dono do cartório, influente político da cidade e a menina Catarina.Eles pareciam bem íntimos. Intimidade esta atestada quando ele tirou do bolso um bolo de notas verdes e entregou à Catarina, mas não sem antes receber um escandaloso beijo, aonde não se identificava mais quem era a presa e quem era a caça.E falando em caça, coitada da Dna. Marisa, a esposa do deputado. Essa coisa dela viver visitando os parentes doentes em outras cidades só podia dar nisso. Enquanto ela praticava o bem, Catarina desfilava pelas ruas da cidade um belo par de sandálias douradas.
2 comentários:
Amiga, passando pra fazer minha visitinha costumeira. Sem palavras.Seu texto é de uma crueza incrivelmente delicada.Será que nós pagamos um pedaço da sandália da Catarina? hehehe. Bem, passei pra deixar um alô, um voto de bom fim de semana, mas hoje realmente a ressaca tá braba. Bjs meus.
Muito bonito seu texto. A deixar muitas interrogações em que vale a pena meditar.
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