20.9.11



Para não dizer que não falei das flores

UM MORTO
EM VISITA
Pela mão de Turmalina, que é neste cemitério “um morto em visita”, chega-nos outra morta, dita a mais brasileira das inglesas. Enche-nos o cemitério de flores.

“Eu sei que minha morte não será o fim do meu trabalho. Onde quer que eu for, tentarei influenciar aqueles que estão destruindo nosso planeta. Assim a Terra terá uma possibilidade de sobreviver”.
(Margaret Mee)
E já que todo cemitério fica mais alegre quando florido:
A minha paixão por ilustrações botânicas começou muito antes da minha entrada na faculdade de Biologia.Aquela que depois de 8 meses abandonei por descobrir que minha visão sobre a Natureza era muito mais poética e social do que científica.
Este meu olhar começou lá na infância, quando, ainda menina, passava tardes devorando as páginas coloridas e brilhantes da National Geographic.
Antes de aprender a fotografar eu já trazia prá casa folhas e flores para colocá-las entre as páginas dos livros da estante do meu quarto. O primeiro artista botânico que me chamou atenção, oficialmente, foi Basilius Besler, porque até então a arte botânica que eu conhecia se resumia à imagens espalhadas pelos livros de Biologia, muitas vezes sem a devida autoria.
Mas o objeto maior da minha admiração não é o Basilius e sim a mais brasileira das inglesas, a artista botânica Margaret Ursula Mee, que retratou como mais ninguém a flora e fauna amazônica e em especial as flores do meu afeto, as orquídeas e bromélias.Essa sim é uma defunta de respeito, não só artista como ativista também.
Não que o Brasil não tivesse ilustradores de respeito.Temos como excelentes exemplos João Barbosa Rodrigues e Maria Werneck de Castro. E o trabalho que Belkiss Alméri e Dulce Nascimento produzem nos dias de hoje também é de altíssima qualidade.E não posso deixar de ressaltar também as adoráveis ilustrações de Rugendas, Tunay e Debret.
Mas é que Margaret Mee foi mais do que uma excelente ilustradora que retratava com riqueza de detalhes a flora brasileira. Ela revelou e documentou várias espécies até então desconhecidas. A fidelidade com que retratava as formas e as cores da natureza é algo de impressionante. Ela fazia os esboços em cadernos de viagem, usando lápis e leves toques de cor. Depois, em seu ateliê, passava suas anotações para pranchas de papel , desenhando a lápis e tinta guache.
Sua contribuição ia além do âmbito artístico. Depois de 15 viagens à região, entre 1956 e 1988, tornou-se uma verdadeira ativista. Vale lembrar que desde muito cedo demonstrou um espírito rebelde apesar da estatura franzina e da fala meiga e suave.
Sua primeira influência política veio do primeiro marido Reg Bartlett, famoso membro de uniões sindicais.Através dele Margaret juntou-se ao partido comunista britânico. E destacou-se rapidamente por ser boa oradora e demonstrar uma grande paixão pelos ideais. Podia-se dizer que ela tinha uma personalidade irreverente.
Mas foi com o segundo marido Greville Mee, que Margaret teve um contato mais direto com a arte, ingressando em 1947 na Escola Camberwell, em Londres, aonde também lecionou. E foi com Greville também que em 1952 mudou-se para a cidade de São Paulo, no Brasil, para cuidar da irmã doente.Ou seja, ela tinha 43 anos, quando colocou os pés em território brasileiro pela primeira vez..E isso era só o começo.
Entre 1952 e 1956, permaneceram em São Paulo.Nessa época ela apaixonou-se pela Amazônia e não demorou muito para que se mudasse para Belém do Pará para ficar próxima da floresta.Ela andou também pelo Mato Grosso, pelos rios Arinos e Alto Juruena, aonde aprendeu a gostar da companhia dos macacos.
“Eram também ótimos vigias, sempre dando sinal de alerta no caso de aproximação de uma onça ou pequenos gatos selvagens”.Aos 46 anos decidiu seguir os itinerários do expedicionário Richard Spruce. Muitas das viagens pelos rios Negro, Vaupés, Içana e o próprio Amazonas foram feitas num pequeno barco, acompanhada apenas por guias da região e ocasionalmente por um ou dois amigos.Isso sem contar as diversas dificuldades encontradas que iam desde surtos de malária e hepatite, os enxames de insetos, o contato com anacondas gigantes até os ataques noturnos de morcegos.
Estabeleceu residência fixa no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.E foi de lá que partiu para sua última expedição, em Maio de 1988. Foi nesta viagem que Mee realizou o sonho que tinha desde 1965, e que por muitas vezes havia tentado concretizar, capturar em papel um evento que poucas pessoas tinham presenciado, o desabrochar da flor da lua, uma espécie rara de cactos:
“ Enquanto me posicionava ali, com a orla escura da floresta ao meu redor, sentia-me enfeitiçada. Então a primeira pétala começou a mexer-se, depois outra e mais outra e a flor explodiu para a vida”.
No período de trinta anos em que andou pela Amazônia observou que o rápido crescimento da atividade humana estava causando profundas alterações dos ecossistemas. Nos últimos 20 anos dedicou-se à preservação da região e levava a mensagem aonde pudesse ser ouvida.Essa sua preocupação deu origem à uma coletânea de desenhos que ela chamou de “Coleção da Amazônia”.
Em 1988 viajou à Inglaterra e aos Estados Unidos para chamar a atenção sobre a devastação crescente e sem sentido das florestas tropicais, assim como para negociar sua coleção.A proposta de Margaret incluía a criação de bolsas de estudo para novos artistas e biólogos na Amazônia.Nessa mesma época , com Tony Morrison, iniciou o trabalho de compilação do livro Em Busca das Flores da Amazônia.
Foi graças à arte e personalidade desta pequena notável que o mundo tomou conhecimento do perigo de extinção de centenas de espécies, ameaçadas pela devastação das florestas do Brasil muito antes da questão ecológica ganhar força.
Sobreviveu a todos os perigos da selva e acabou por morrer num acidente de carro em Novembro desse mesmo ano, longe da floresta que tanto amava.

Ela criou quatrocentas pranchas de ilustrações em guache, quarenta sketchbooks e quinze diários.Um ano depois da sua morte foi criada a Fundação Botânica Margaret Mee com o objetivo não só de formar ilustradores botânicos, como também de aperfeiçoar o conhecimento científico a favor da conservação e exploração dos recursos naturais renováveis.
Com o apoio da Fundação, ilustradores brasileiros concorrem anualmente à uma bolsa de estudo de seis meses no Royal Botanic Gardens Kew, em Londres. Ela se foi, mas o seu trabalho continua. Acho essa a maior das suas realizações!

2 comentários:

Luciana Nepomuceno disse...

Turmalina, querida,

que sintonia! Ontem tive tantas saudades do cemitério amigo que passei um tempão de texto em texto e, veja, li entre tantos exatamente esse seu. Bjs.

Carlota e a Turmalina disse...

Lu...sintonia fina é divina!!! Fico feliz em saber que vc estava por aqui.Bjos